Helenismo e Virtude: Papo CAFONA?
Seria mesmo extravagância acadêmica ou discurso vazio um politeísta helênico ficar falando em virtude por aí? Ou teria esse tipo de discussão fundamento na tradição grega ancestral? Eis o assunto deste post.
A.Demétrios H.S.R.
11/4/20257 min read


"Pelo digno nome Excelência, Ela é chamada"
(Fragmento órfico 175, em referência à deusa Atena como a encarnação da Virtude/Excelência. Traduzido do grego para o inglês por Thomas Taylor.)
Esses dias vi um post no Instagram criticando quem muito fala de virtude (com a figura de um filósofo grego no fundo) porém não cumprimenta nem o porteiro. A postagem foi de uma perfil pagão, logo, imagino se referia a integrantes da nossa “bolha” neopagã. Posso estar equivocado, mas o caso irá servir.
Noutra ocasião, li críticas sobre os praticantes do politeísmo helênico serem moralistas e buscarem uma releitura mais “clean” da religião (aqui se refere aos pontos de vista contrários a possibilidade do retorno ao sacrifício animal).
Antes de prosseguir, precisamos da definição de uma das palavras utilizadas no título deste artigo:
CAFONA: 1 Que ou aquele que se caracteriza pela falta de bom gosto, aparência extremamente convencional e desatualizada, principalmente ao trajar-se, revelando falta de sofisticação e de elegância; brega: “A humanidade não pode viver sem um clichê. Ele reforça o paladar com um sabor cafona muito especial” (LA3).
2 Que ou aquele que se enfeita ou se arruma de maneira ridícula, espalhafatosa, marcadamente vulgar e de mau gosto; brega: “[…] Mesmo cafona e excessivamente maquiada, continua uma mulher charmosa” (RN).
3 Indivíduo sem refinamento, simplório; possidônio, provinciano, suburbano.
(Dicionário Michaelis On-line)
Quando alguém de fora ou de dentro da “bolha” neopagã philohelênica critica nossas falas sobre Virtude, tenho a impressão de que esse assunto é visto pelo grande público como CAFONA.
Buenas.
Na tradição helênica ancestral, existe um elemento chave, tão central quanto a deusa Héstia é no panteão, que se chama Areté.
“Como princípio formativo da paideia grega, o conceito de areté (virtude) referia-se, em termos gerais, a um ideal de excelência humana. Inicialmente ligado à antiga cultura aristocrática, restrita à nobreza, teve como paradigma as figuras exemplares de deuses e heróis. No período clássico, a virtude foi redefinida pelos sofistas, visando atender às necessidades educativas da polis, por meio do ensino da areté política, centrada na retórica. No mesmo período, a filosofia platônica concebeu a virtude como um ideal moral, resultado da relação entre uma boa natureza e uma boa educação. À educação competia gerir os impulsos contraditórios da alma, harmonizando-os, pela superação do antagonismo entre razão e paixões. Estas distintas visões formativas coexistiram no período clássico, atestando a riqueza cultural da antiga Grécia.”
(Lídia Maria Rodrigo)
Areté (Excelência): “O ponto máximo de aperfeiçoamento que um determinado ser pode alcançar”. De acordo com um grande e já falecido membro do grupo étnico helênico YSEE, Vlassis Rassias, o sentido da vida humana para o helenismo não é a ideia dominante e cristã de salvação da alma. E sim a busca por uma vida digna, honrada e pelo desejo de liberdade, conforme a Razão. A plenitude do ser humano. E para isso, o Hellenismo, através do sistema de valores baseado na Areté, visa formar um ser humano autônomo, que tenha autodomínio, e portanto não poder ser facilmente controlado por agentes externos. Areté tem sido traduzida por "Virtude". "Excelência" é outra possível tradução, talvez mais adequada e livre da sombra da moralidade cristã. "Força", "Qualidade de destaque” são outros sentidos. Além do campo ético, Areté também abrange características intelectuais e corporais que se sobressaem em algo ou alguém: Inteligência, Beleza, Perspicácia, Saúde, etc.
Areté é um dos mais importantes conceitos da tradição helênica, cujo significado foi ampliado ao longo da história. Nas origens se referia a excelência do guerreiro e seus valores superlativos, "o mais bravo", "o mais nobre", etc. Nos tempos da consolidação da estrutura da Pólis, outras Aretai (plural de Areté) se tornam baluartes da vida em comunidade: Dike (Justiça ou Direito), o Metron (a justa medida), Eusebeia (a Piedade), Sophrosyne (autocontrole ou temperança), entre outras. A Filosofia, por sua vez, se encarregou do assunto com verdadeiro afinco, de tão essencial conceito se tratava para os antigos. Para os grandes expoentes do Hellenismo, a vida eudaimonica (feliz ou bem-aventurada, realizada) necessariamente se dá nos caminhos da Areté. (https://casadedemeter.com.br/o-projeto)
Os estoicos elaboraram uma taxonomia detalhada da virtude, dividindo a virtude em quatro tipos principais: sabedoria, justiça, coragem e moderação. A sabedoria é subdividida em bom senso, bom cálculo, perspicácia, discrição e desenvoltura. A justiça é subdividida em piedade, honestidade, equidade e negociação justa. A coragem é subdividida em resistência, confiança, nobreza, alegria e laboriosidade. A moderação é subdividida em boa disciplina, decoro, modéstia e autocontrole. Da mesma forma, os estoicos dividem o vício em tolice, injustiça, covardia, intemperança e o resto. Os estoicos sustentavam ainda que as virtudes são interligadas e constituem uma unidade: ter uma é ter todas elas. Eles sustentavam que a mesma mente virtuosa é sábia, justa, corajosa e moderada. Assim, a pessoa virtuosa é disposta de uma certa maneira com relação a cada uma das virtudes individuais. Para apoiar sua doutrina da unidade da virtude, os estóicos ofereceram uma analogia: assim como alguém é poeta, orador e general, mas ainda é um indivíduo, também as virtudes são unificadas, mas se aplicam a diferentes esferas de ação.
(William O. Stephens no artigo sobre estoicismo para o site Stoic Ethics | Internet Encyclopedia of Philosophy. )
Quando você estuda o bastante sobre a tradição helênica, percebe que Areté é um tema recorrente, amplamente revelado pela extensa literatura original de que temos acesso. Dos maiores poetas, Homero enaltecia as aretai aristocráticas e guerreiras, e por sua vez Hesíodo evidenciava as do homem do campo. E através da sagrada Philosophia, Areté atingiu alturas inimagináveis, para não dizer, transcendentais. No linguajar moderno popular, este pilar do helenismo foi “espiritualizado”.
Portanto, é perfeitamente razoável que politeístas helênicos se apropriem com frequência dessas mesmas reflexões, pois é parte das práticas e convicções. Estranho seria o helenista que ignora a relevância disso.
"Honra os Deuses cujo culto os antepassados nos legaram; fica certo, porém, que a melhor oferenda que lhes podes levar e a melhor maneira de honrares e venerares os deuses consiste em seres o melhor e o mais justo possível."
(Isócrates, o Pai da Retórica)
Por outro lado, preciso concordar com as críticas e isso vale para qualquer esfera social em que transitamos: não adianta discorrer horas sobre Excelência/Virtude (em especial nas redes sociais, onde ocorrem as “tretas” e “ranços”) e no dia-a-dia, no trato com as pessoas da família, trabalho, desconhecidos, ou outros seres, meio ambiente e nada disso se concretizar.
O problema da Excelência é coisa do cotidiano, reflita:
Imagine-se numa emergência médica em que um profissional de saúde atende um ente querido seu sem uma conduta pautada minimamente na excelência esperada?
Ou, num exemplo menos dramático, lembre de toda vez que você pediu uma informação ou ajuda num ambiente comercial e foi tratado mal por um profissional cuja atuação foi tudo, menos excelente ou educado?
Ou simplesmente você foi alvo de uma atitude estúpida, grossa ou preconceituosa que te fez se sentir desrespeitado, injustiçado ou humilhado?
Ou você mesmo, quando agiu de maneira bem oposta ao que propõe um comportamento inspirado na Areté, magoou pessoas amadas ou provocou mal estar em qualquer outro por aí voluntariamente ou por falta de alguma Virtude/Excelência?
A Philosophia é a nossa Mestra na direção da Areté, que por sua vez, é totalmente prática. Tendo como base algumas das Excelências helênicas, o que seria o ser humano virtuoso (ou excelente)? Racional (ou Pensante e Consciente), Temperante, Discernidor, Justo e Piedoso. E como adquirimos estas virtudes? Na prática, com certeza, e não no mero falar.
É cafonice enaltecer a Justiça como nossos antepassados de tradição faziam e desejar ser mais Justos em nossas ações? É cafonice buscar ser Temperante em meio ao caos social que vivemos, onde reina o descontrole disfarçado de “intensidade”? É cafona sermos discernidores, saber distinguir o certo do errado? Pois é isso que o Helenismo nos propõe e precisamos discutir esses assuntos de modo a concretizá-los na vida cotidiana.
Para além da praticidade da existência terrestre, conforme já comentado em algum outro post, buscar uma vida excelente se cruza com a teologia helênica inúmeras vezes nos ramos filosóficos. Por exemplo, para Aristóteles “os homens se tornam deuses por superabundância de excelência” (Ética a Nicômacos, Livro 7). Ao longo da história do pensamento helênico, a Excelência, além de ser divina por si mesma, se torna cada vez mais apoteótica.
E, muito importante: já notaram que Filosofia -grega- é amplamente divulgada nos conteúdos do Hiero, a ponto de chamarem nosso grupo de “grupo filosófico” ou algo semelhante. Normalmente as pessoas relegam os Filósofos à “última classe da turma”, e eu fiz isso no início da minha jornada helênica, e ignoram o poder e extensão da Filosofia na cultura grega. É repetitivo, porém, muita gente continua a ignorar. Certamente não é obrigatório seguir alguma escola filosófica. De modo geral, A Filosofia não visou destruir as práticas religiosas, e sim refinar as crenças e ideias, tanto que Teologia é uma das principais “matérias” dos antigos filósofos. E mais: quando citamos um filósofo em especial, não pense em um indivíduo isolado do mundo. Imagine os vários nomes conhecidos vinculados a cada escola, fora as centenas de estudantes anônimos. Então, por exemplo, quando menciono “ah, Platão…”, lembre-se que uma multidão de gregos frequentavam sua Academia e compartilhavam suas idéias, total ou parcialmente. Reflita também que estamos a falar de tradições iniciadas por um ou outro nome famoso, mas se estenderam muito além dele, atravessaram séculos, participando de todas as fases da Grécia até o período da tirania cristã, superando esta, alcançando o medievo e finalmente chegando nos tempos modernos.
Podemos sim estar fartos de discursos vazios só para exibir academicismos pela Internet, porém, na vida “real”, sabemos o quanto faz falta uma abordagem com intenção sincera de desenvolvimento pessoal e coletivo rumo a uma sociedade mais justa e pacífica.
"Dentre todos quantos o conheceram, os que amam a virtude não cessam de lamuriá-lo qual o melhor auxiliar à prática do bem. Quanto a mim, que o vi tal qual o pintei: devoto, de nada fazer sem a concordância dos deuses; justo, de jamais causar o menor mal a ninguém, e sim, ao contrário, prestar os maiores serviços aos que o frequentavam; íntegro, de jamais preferir o agradável ao honesto; prudente, de jamais enganar-se na apreciação do bem e do mal, capaz de compreender todas estas noções, explicá-las e defini-las; hábil no julgar os homens, apontar-lhes suas faltas, conduzi-los à virtude e ao bem(...)
(Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates, Xenofonte)
